Um dos aforismos mais conhecidos por todo o grande público, desde os primórdios do Direito Romano é o famoso “In dubio pro reo”. Mais do que uma simples expressão, trata-se de um importante princípio de Direito Processual Penal, o qual assegura ao réu o também conhecido benefício da dúvida. Calcado na presunção de inocência – norma pétrea na nossa Constituição Federal de 1988 -, resta sabido que todos são inocentes até que contra si pese sentença condenatória irrecorrível. Em outras palavras, até que não se opere o trânsito em julgado, não se pode considerar ninguém, absolutamente ninguém, culpado.

Nesse sentido, no Processo Penal hodierno, a dúvida beneficia o réu apenas quando do momento da sentença, mas não o isenta de ser investigado no bojo do Inquérito Policial nem, tampouco, no âmbito de uma Ação Penal. Nesses momentos anteriores à decisão final, aplica-se, no Brasil, o princípio que discutimos hoje, o “in dubio pro societate”. Em bom Português, determina-se que, diante de uma dúvida acerca da conduta do indivíduo, o mesmo deverá ser investigado, como uma forma de ultimar o princípio da supremacia do interesse público.

Esse entendimento deriva da ideia de que o Ministério Público, na sua função de “Parquet”, é o defensor da sociedade, sendo os promotores de justiça seus advogados. Dentro dessa ideia, o eventual infrator é um indivíduo que destoou da sociedade e precisa ser punido, no livre exercício do “jus puniendi”, que é a premissa do Estado de evocar para si o direito de punir. Com isso, cumpre-se, em tese, a chamada função social da pena, que se divide em castigar o malfeitor de um lado e gerar exemplo social de outro. E é dentro desse viés que o promotor de justiça precisa agir em defesa da sociedade, mas dentro do que se chama de imparcialidade objetiva, já que não está no papel de mero acusador.

Dentro dessa linha de raciocínio, o promotor de justiça quando recebe os resultados da investigação policial deve fazer um austero juízo de valor sobre a existência ou não de uma prática criminosa, bem como sobre a culpabilidade do agente que fora investigado. Ocorre que, em muitas situações, não se opera o convencimento pleno do representante do Ministério Público, o qual fica em dúvida sobre a ilicitude do ato do indivíduo, ou ainda, sua responsabilização. Exatamente nesse momento é exercido o “in dubio pro societate”. Na dúvida, o promotor denuncia o acusado, “oferecendo-lhe” a oportunidade de se defender no transcurso da Ação Penal.

A plausibilidade da ideia é bastante serena, chegando a ser sedutor o pensamento da forma assim descrita. Academicamente, o cenário parece adequado e, por um instante, pode-se até chegar a acreditar que, de fato, uma Ação Penal é uma “oportunidade” para o acusado se defender. Discordo plenamente por vários aspectos cuja amplitude vai desde a imprecisão técnico-principiológica até a incoerência observada na realidade tática do Brasil enquanto país.

Importante começar exatamente pelo ponto da experimentação do princípio ao redor do mundo. Conforme eloquente e competente fala do advogado criminalista Dr. Antonio Carlos de Almeida Castro, o “in dubio pro societate” existe apenas no Brasil, não sendo aplicado em nenhum outro país do mundo. Muito longe de minha índole desmerecer o meu país, mas o fato de um instituto de tamanha envergadura prática consta apenas nos alfarrábios tupiniquins gera uma certa inquietação. Sendo assim, o segundo passo seria consultar nossa legislação para encontrar o lastro desse princípio, mas basta uma simples pesquisa para restar evidente que além de não estar positivado em nosso ordenamento jurídico, ele não encontra, sequer, supedâneo constitucional ou legal.

Nesse sentido é o entendimento do eminente Ministro do STF Gilmar Medes, quando no HC/PR 227.328, assim escreveu: “suposto ‘princípio in dubio pro societate’” “[…] não encontra qualquer amparo constitucional ou legal e acarreta o completo desvirtuamento das premissas racionais de valoração da prova”. Palavras fortes e necessárias para fazer ruir esse instituto nefasto e dissonante do Estado aquilatado pela Constituição de 1988.

Afinal, o Estado com todo a sua máquina infinitamente superior a qualquer cidadão, ao ter a oportunidade de investigar alguém dentro do prazo legal – muitas vezes prorrogado reiteradamente -, não consegue contra ele encontrar provas contundentes da criminalidade de sua conduta, lança-lhe à sorte, em uma Ação Penal, sob a sofisma de dar-lhe oportunidade de defesa. Essa manobra de “tocar para frente” sem o convencimento pleno nem mesmo daquele a quem é conferido o poder de acusar, devidamente avalizada pelo “indubio pro reo”, mais parece uma oportunidade de tentar achar o que não existe, por meio da intimidação do réu.

Notadamente, esse mecanismo pode gerar distorções bastante complexas da verdadeira finalidade do processo, que é de natureza pública. Como refletido, em um Estado que tem na Presunção de Inocência uma de suas cláusulas pétreas, é deveras incoerente condenar um indivíduo a sofrer um processo penal – muitas vezes uma verdadeira condenação social – mesmo pairando severas dúvidas sobre sua culpabilidade. E isso acaba se agravando ainda mais quando se observa a rotina brasileira, sobretudo quando envolve mídia, influência política ou outros fatores que deveriam correr quilômetros de distância das autoridades constituídas.

Por tudo isso, externo meus cumprimentos ao eminente ministro da suprema corte que enxergou e reconheceu essa gravíssima violação ao direito das pessoas. É um grande primeiro passo para o sepultamento deste instituto desprezível que nada mais representa senão um ranço de tempos passados que precisamos esquecer.

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