Por Marcelo Henrique de Carvalho
A Cidade de São Paulo, com seus quase 12 milhões de habitantes, é palco de tensões profundas e históricas. Entre labirintos de concreto e avenidas apressadas, desenrola-se, há décadas, uma tragédia silente no centro da metrópole: o fenômeno da Cracolândia. Este território, convertido em metáfora da vulnerabilidade social, revela a persistente incapacidade política e institucional de lidar, com humanidade e eficácia, com a dependência química e suas nuanças filosóficas e sociológicas.
Sobre recentes operações deflagradas pelo poder público municipal e estadual, a paisagem urbana e social da região foi radicalmente alterada. Nas últimas semanas, a rua dos Protestantes, antes ocupada por centenas de pessoas em busca do crack, amanheceu deserta, surpreendendo comerciantes, moradores e analistas. O silêncio que tomou o lugar do “fluxo” levanta um questionamento inquietante: para onde foram estas pessoas que, privadas do território, vagueiam sem destino, naufragando entre bairros e periferias, à mercê de ações eminentemente punitivas e de escassos amparos clínico-sociais?
O enredo da dispersão
Em maio de 2025, autoridades municipais e estaduais promoveram uma série de operações integradas, envolvendo forças policiais, Ministério Público e órgãos da receita e vigilância sanitária. O foco, segundo pronunciamentos oficiais, era “estrangular o tráfico”, desmobilizando a infraestrutura criminosa de facções e seus esquemas de lavagem de dinheiro arraigados em hotéis, pousadas, pontos de vendas e distribuição de drogas.
De acordo com números divulgados, a ação resultou em prisões de lideranças do tráfico, interdição de imóveis, e uma redução drástica dos crimes patrimoniais na região. O governo estima que o número de usuários na cena aberta de uso de drogas caiu de aproximadamente quatro mil para menos de trezentos durante o dia. Contudo, não tardaram a emergir denúncias de violações de direitos humanos, possíveis transportes forçados em vans, internações compulsórias e, principalmente, a “higienização social” da área central da cidade.
O esvaziamento das ruas da Cracolândia, longe de significar o fim do drama, tornou-se um fator catalisador para a dispersão dos dependentes químicos. Há relatos frequentes de deslocamentos para bairros periféricos como Paraisópolis, Guarulhos e outros pontos metropolitanos, inclusive formação de novos agrupamentos menores, pulverizados e difíceis de mapear. A dispersão confere ao fenômeno contornos ainda mais complexos, com a perda dos vínculos territoriais e a fragmentação das redes de atendimento e de proteção.
Entre o rigor policial e o vazio do tratamento
O dilema central que emerge da crise na Cracolândia é o predomínio das soluções de segurança pública sobre articulações efetivas de cuidado, tratamento e reinserção social. As operações, marcadas por aparato policial, mostram a tendência contemporânea de criminalização dos corpos vulneráveis e dos comportamentos desviantes, negligenciando as múltiplas dimensões da dependência química, fenômeno que se inscreve no campo intersubjetivo e relacional.
Dados de pesquisa apontam que 88% dos paulistanos consideram “pouco ou nada eficazes” as ações públicas no enfrentamento da dependência. E se o modelo repressivo logrou diminuir números absolutos no centro, há indícios de agravamento em áreas periféricas, desassistidas e invisibilizadas. O programa municipal Redenção na Rua, por exemplo, reportou abordagens violentas, internações compulsórias sem autorização judicial e barganhas indevidas como contrapartida para tratamento, suscitando graves inquietações acerca das garantias mínimas de dignidade.
A reconfiguração dos fluxos migratórios dos dependentes químicos (a “diáspora” dos invisíveis) desestrutura ainda mais as frágeis políticas públicas de saúde, comprometendo a atuação dos CAPS, dos CRAS, dos CREAS e dos equipamentos municipais. O acesso à rede de cuidados tornou-se errático, com filas intermináveis e ausência de abordagem não coercitiva, que respeite a autonomia e singularidade dos sujeitos.
Saúde pública: mito ou realidade?
Embora o discurso oficial insista na integração entre ações de segurança e saúde, o cotidiano mostra que os investimentos em serviços especializados são insuficientes frente à complexidade do fenômeno. Poucos equipamentos concentram alta demanda: o Hub de Cuidados em Crack e Outras Drogas, referências municipais e centros de atenção psicossocial enfrentam restrições de vagas, dificuldade em garantir continuidade terapêutica e escassez de equipes multidisciplinares.
O modelo compulsório, tanto de acolhimento quanto de internação, potencializa o ciclo de estigmatização e vulnerabilização, dificultando o sentido de pertencimento e o resgate de vínculos comunitários. Sem território, os dependentes tornam-se nômades, explorados por redes criminosas, marginalizados nas periferias, apagados das estatísticas e desvinculados de políticas públicas que tratem a dependência não como crime, mas como fenômeno social multifacetado e existencialmente disruptivo.
O papel do Estado e da sociedade
A complexa equação da Cracolândia pede, antes de tudo, uma revisão filosófica e epistemológica dos paradigmas de enfrentamento das drogas e da exclusão. A resposta estatal, calcada em operações de choque, revela-se insuficiente para abordar os determinantes históricos, culturais e subjetivos do fenômeno. É necessário transitar da lógica da repressão para a deliberação, da exclusão para a inclusão, do controle para o cuidado.
Experiências internacionais e estudos comparativos apontam para a necessidade de políticas integradas, baseadas na redução de danos, na promoção de direitos humanos, no fortalecimento de redes comunitárias e na valorização dos saberes locais. O próprio Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas e Álcool aventou a criação de territórios de uso assistido, inspirados em modelos europeus. Nesse sentido, investigar as condições de vida e as rotinas dos dependentes migra do campo restrito da segurança para uma abordagem plural, interdisciplinar e sensível à dignidade.
Cidade, cidadania e o abismo filosófico
O drama da Cracolândia, em última instância, é o drama da exclusão urbana e existencial. Como descreveu a antropóloga Roberta Costa, “a Cracolândia é o quartinho da bagunça da cidade: todos aqueles que não cabem, que não são bem-vindos, acabam vindo para cá”. É ali que se cruzam caminhos perdidos, sujeitos despossuídos, narrativas interrompidas e a própria fragilidade das utopias modernas de progresso e integração social.
O impasse em São Paulo espelha questões filosóficas essenciais: que cidade se quer construir? Quais vidas merecem ser cuidadas e incluídas? Qual é o estatuto do sofrimento, da loucura, do vício, na ordem social contemporânea? Quais são os limites éticos da intervenção estatal sobre corpos vulneráveis? Por detrás do esvaziamento da Cracolândia e da diáspora dos dependentes, pulsa a inquietação permanente que desafia projetos de cidade e modelos de cidadania.
Perspectiva sociológica e o elusivo “fim”
Em vez de um capítulo encerrado, a dispersão dos dependentes químicos pelo tecido urbano revela o fracasso da abordagem reducionista, tanto no âmbito da segurança quanto da saúde pública. As vozes dos usuários, de familiares, de agentes sociais e de pesquisadores convergem para um diagnóstico inquietante: o problema não acabou, apenas mudou de configuração, tornando-se menos visível mas igualmente devastador.
Para que se alcance solução, é essencial abandonar a lógica higienista e reverter o ciclo de invisibilização e exclusão. Recuperar a dignidade dos sujeitos, restituir-lhes o direito à cidade e articular estratégias que transcendam o binômio repressão-acolhimento é, hoje, o maior dos desafios para nossa metrópole e para o Estado Democrático de Direito.
A Cracolândia, da dispersão à reinvenção das políticas, permanece, enfim, como espelho das contradições de São Paulo e do Brasil. Entre becos e avenidas, desafia-nos à reinvenção de paradigmas, à ampliação de horizontes civilizatórios e ao compromisso radical com a justiça social. Que não se apaguem as vozes dos invisíveis. Que suas trajetórias errantes interpelem nossas consciências e políticas: só assim, talvez, consigamos desenhar soluções verdadeiramente humanas para a crise que não quer se dissolver.

