Por Marcelo Henrique de Carvalho
No contexto brasileiro contemporâneo, o direito de acesso à saúde se firma como um dos pilares mais sólidos e emblemáticos da cidadania, sendo consagrado como direito fundamental pela Constituição Federal de 1988. A Carta Magna, ao elevar a saúde à condição de direito de todos e dever do Estado, redefine radicalmente o cenário nacional, rompendo com o paradigma excludente pré-constitucional em que o atendimento estatal era restrito a contribuintes do sistema de seguridade social. O processo de constitucionalização do direito à saúde, impulsionado pelos movimentos sociais e pela Reforma Sanitária, introduziu o Sistema Único de Saúde (SUS), configurando um modelo universalista e igualitário, com profundas repercussões tanto sociopolíticas quanto jurídico-institucionais.
A saúde, como componente intrínseco do direito à vida e o núcleo da dignidade da pessoa humana, transcende o cuidado assistencial e incorpora dimensões preventivas, promocionais e protetivas. O conteúdo normativo constitucional consagrado nos artigos 6º, 196 a 200, não se limita à prestação de serviços médicos e hospitalares, mas abarca políticas públicas que visem ao bem-estar coletivo, à redução do risco de doenças e ao acesso universal e igualitário às ações de saúde. Este avanço não só ampliou o alcance dos benefícios sociais, mas também impôs ao Estado o dever de formular estratégias integradas, intersetoriais, envolvendo educação, saneamento, alimentação, habitação e segurança, como fatores determinantes da saúde pública.
A organização do SUS, sempre baseada na descentralização, na participação social e na integralidade do atendimento, se estrutura em rede regionalizada e hierarquizada, permitindo que cada esfera de governo – União, Estados e Municípios – participe de forma coordenada da gestão do sistema, com financiamento solidário e direção única. O princípio da universalidade, extraído diretamente da Constituição, expressa-se no direito de qualquer pessoa, independentemente de condição econômica ou social, acessar os serviços e ações de saúde, rompendo com todas as formas de discriminação ou segmentação. O acesso, além de universal, deve ser igualitário, exigindo que sejam prestados serviços de forma homogênea em todo o território nacional.
O princípio da integralidade ganha relevo sobre a dimensão do atendimento, que deve considerar o indivíduo em sua totalidade biopsicossocial, priorizando atividades preventivas sem prejuízo dos serviços assistenciais curativos. A efetividade deste princípio, entretanto, implica grandes desafios, especialmente diante dos limites orçamentários e da sofisticada demanda por tecnologias em saúde, exigindo racionalidade na alocação de recursos e rigor político-administrativo para incorporar novos medicamentos, procedimentos e tecnologias ao SUS. A inclusão de representantes da sociedade civil nos fóruns de governança do sistema contribui para a democratização do acesso e fiscalização das políticas implementadas, mas o desafio de garantir integralidade sem perder a equidade permanece constante.
A judicialização da saúde, fenômeno estrutural na realidade brasileira, expõe tensões entre o direito individual e as limitações orçamentárias do sistema. A busca judicial por medicamentos, tratamentos e procedimentos não incorporados às listas oficiais do SUS ingressou nas pautas dos tribunais e alcançou o Supremo Tribunal Federal, que passou a definir parâmetros técnicos e balizas para compatibilizar o direito constitucional à saúde com o respeito à divisão de competências e à sustentabilidade das finanças públicas. As decisões do STF destacam a importância das instâncias técnicas de avaliação – como Anvisa, Conitec e protocolos clínicos –, determinando que o acesso judicial só se legitima quando fundamentado em evidências científicas robustas e na inexistência de alternativas terapêuticas disponíveis, evitando a judicialização indiscriminada que ameaça a integridade do planejamento estatal. Em paralelo, o Tribunal reitera a solidariedade entre entes federativos, permitindo que qualquer esfera do poder público seja acionada judicialmente para assegurar direito ao tratamento, independentemente da origem do recurso.
No âmbito do sistema complementar, composto pelos planos privados de saúde, o debate sobre a cobertura obrigatória de procedimentos pelo setor suplementar se intensificou, especialmente diante das decisões judiciais que impunham às operadoras o custeio de procedimentos não previstos no rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). O rol da ANS, construído tecnicamente e periodicamente atualizado, funciona como referência mínima de cobertura, mas os consumidores passaram a pleitear judicialmente tratamentos inovadores, alegando omissão do rol frente à evolução científica e às necessidades individuais. O STF, ciente do impacto econômico e social dessa demanda, adotou em 2025 o entendimento da chamada “taxatividade mitigada”, significando que os planos de saúde somente poderão ser obrigados a custear tratamentos fora do rol em situações excepcionais, desde que preenchidos cumulativamente requisitos objetivos: prescrição médica fundamentada, inexistência de alternativa adequada, eficácia e segurança comprovadas, registro na Anvisa e ausência de negativa expressa ou análise pendente pela ANS. Esta inovação jurídica busca equilibrar o direito à saúde do usuário e a viabilidade do sistema, evitando abusos e promovendo decisões baseadas no rigor técnico-científico.
A repercussão dessa orientação do STF gerou debates intensos na sociedade civil e nas entidades de defesa do consumidor, especialmente diante dos riscos de limitar o acesso a inovações tecnológicas e de privilegiar os interesses econômicos das operadoras privados. Por outro lado, o setor suplementar defende a necessidade de regulação clara e objetiva, a fim de evitar o desequilíbrio do modelo, prevenir fraudes e garantir sustentabilidade financeira. O Tribunal, ao definir o novo paradigma, busca a contenção da judicialização excessiva e o fortalecimento da credibilidade dos institutos reguladores, valorizando a decisão médica fundamentada e o respeito aos protocolos estabelecidos.
No plano legislativo, medidas recentes consolidaram avanços na transparência, participação popular e ampliação das políticas voltadas ao fortalecimento do SUS. A integração de políticas sociais, a criação de pactos de atenção básica, a incorporação de novas tecnologias e medicamentos e o empenho em garantir acesso universal e integral refletem o compromisso do Estado brasileiro com o direito constitucional à saúde. O desafio contemporâneo é conciliar as bases do universalismo e da integralidade com a sustentabilidade orçamentária, o controle de novas despesas, a incorporação de evidências científicas e o respeito à autonomia dos profissionais de saúde.
A saúde, portanto, emerge do constitucionalismo brasileiro como bem jurídico de extrema relevância, demonstrando a evolução do Estado social, que assume para si o papel de promotor da dignidade da pessoa humana e da efetividade dos direitos fundamentais. O caminho institucional estabelece complexas interações entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como com órgãos técnicos, no sentido de garantir que o direito à saúde permaneça efetivo frente às adversidades econômicas e às demandas cada vez mais personalizadas. O futuro do direito à saúde, especialmente após recentes decisões do Supremo Tribunal Federal, aponta para um modelo de maior equilíbrio técnico-orçamentário, com ênfase no controle público, na transparência, na racionalidade das políticas e na valorização das evidências científicas na incorporação de novas tecnologias.
Os desafios da judicialização, da regulação do setor suplementar e da garantia da universalidade e integralidade serão, inevitavelmente, temas permanentes e centrais no debate constitucional brasileiro, sendo imperativo que todos os agentes envolvidos atuem sinergicamente na defesa e promoção deste direito fundamental. O direito de acesso à saúde, sendo expressão direta da cidadania, da dignidade humana e da justiça social, permanece como marco civilizatório e reafirma, cotidianamente, a missão constitucional do Estado brasileiro.

