Por Marcelo Henrique de Carvalho

O Governo do Estado de São Paulo, em seu mais recente movimento no campo das políticas públicas educacionais, iniciou a tramitação de uma proposta legislativa que visa redefinir as bases de distribuição dos recursos oriundos do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) destinados à educação básica municipal. A iniciativa busca substituir os critérios consolidamente assentados no contingente populacional dos municípios por um paradigma que premia métricas de desempenho, equidade e avanços efetivos em resultados de aprendizagem, inaugurando um novo ciclo no federalismo fiscal da educação paulista.

Tal proposta emerge de um contexto em que as avaliações padronizadas do aprendizado, a exemplo do Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp), conquistam centralidade nos debates sobre qualidade do ensino e justiça distributiva. De acordo com o desenho apresentado, 80% do novo cálculo para rateio dos recursos terá como fundamento o desempenho dos estudantes municipais no Saresp, enquanto 20% estarão vinculados a variáveis relativas à condição socioeconômica das famílias, à ampliação da oferta de ensino integral e ao cumprimento de metas qualitativas pactuadas em âmbito estadual. Trata-se, portanto, de uma inflexão normativa que não apenas tensiona os limites do chamado “pacto federativo” no setor educacional, mas também reconfigura a lógica de responsabilização dos entes municipais diante da agenda de resultados.

A inspiração do governo paulista em modelos internacionais e nacionais, como o caso do Ceará, cuja política de distribuição de recursos baseada em resultados consagrou-se como referência positiva, revela a aposta em mecanismos indutivos para estimular a transformação estrutural da educação municipal. O diagnóstico subjacente sustenta-se na convicção de que incentivos atrelados a metas objetivas de desempenho produzem externalidades virtuosas na gestão escolar, promovendo, em última instância, a elevação dos padrões de aprendizagem e a redução das desigualdades educacionais intra e intermunicipais.

Entretanto, a racionalidade técnica que permeia a proposta não está isenta de controvérsias. A centralidade atribuída ao Saresp, enquanto correlato principal de aferição do mérito das redes municipais, é contestada por entidades representativas dos professores, por especialistas em políticas públicas e por setores da oposição parlamentar. Para os críticos, a avaliação em larga escala, ainda que relevante para o monitoramento do sistema, não pode ser convertida em critério único ou predominante de repasse de recursos, sob pena de aprofundar disparidades históricas e penalizar redes que enfrentam desafios estruturais mais agudos—como pobreza, carências materiais, barreiras territoriais e baixa capital educativo familiar. Ademais, argumenta-se que o uso do Saresp como base para bônus anuais de desempenho já produz tensões e distorções práticas no cotidiano escolar, tais como o treinamento preparatório excessivo ou a indução ao foco restrito em competências avaliadas, em detrimento de uma formação integral.

Ainda nesse eixo crítico, ressalta-se a importância de considerar a multiplicidade de fatores que influenciam o desempenho dos estudantes e as condições reais de oferta da educação básica. O risco de um modelo distributivo excessivamente calcado em resultados mensuráveis reside na tendência de reforçar o fosso entre municípios que partem de patamares socioeconômicos díspares, já que os indicadores refletem, de modo incontornável, o peso das desigualdades pré-existentes. Não obstante, a proposta paulista incorpora mecanismos de mitigação por meio dos 20% da fórmula que consideram aspectos de vulnerabilidade social e metas específicas, numa tentativa de conjugar justiça distributiva e meritocracia.

Do ponto de vista estritamente político-institucional, a iniciativa estadual introduz um fator adicional de disputa e negociação entre os municípios e o Executivo paulista. O volume de recursos em jogo é significativo—estima-se em mais de 800 milhões de reais anuais, aproximadamente 13% do total da arrecadação do ICMS com destinação obrigatória à educação. O Governo acena com a implementação gradual do novo modelo, estabelecendo uma transição paulatina entre 2026 e 2028, a fim de suavizar eventuais impactos negativos sobre os orçamentos municipais, sobretudo naqueles que podem experimentar perda relativa de receitas.

Entretanto, mesmo com a fase de transição, os municípios que hoje sofrem com indicadores educacionais frágeis manifestam insegurança frente à possibilidade de agravamento das desigualdades orçamentárias, em contexto de marcada heterogeneidade estrutural. Representantes do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (APEOESP) vocalizam preocupações a respeito dos critérios de avaliação e dos potenciais efeitos perversos de uma competição institucionalizada por recursos escassos. A historiografia recente sobre políticas de accountability e financiamento da educação oferece exemplos inequívocos de modelos que, à revelia das intenções iniciais, acabaram exacerbarando a fragmentação federativa e ampliando as dificuldades de municípios periféricos.

No plano normativo, a proposta ainda carece de tramitação nas comissões temáticas e de aprovação pelo plenário da Assembleia Legislativa. O debate, ao que tudo indica, tende a polarizar-se entre os defensores da “gestão por resultados”—que veem na métrica do desempenho um instrumento modernizador, capaz de alinhar incentivos e produzir avanços expressivos no rendimento escolar coletivo—e os partidários de uma abordagem sistêmica, voltada à promoção da equidade substantiva e à superação dos determinismos socioeconômicos. Nessa encruzilhada, o papel das instituições de controle social, como conselhos municipais de educação, movimentos sociais e fóruns acadêmicos, assume centralidade, pois a transparência, o acompanhamento crítico e a ampla publicização dos dados e critérios utilizados revelar-se-ão condições essenciais para legitimar ou contestar os rumos da reforma.

Ademais, quaisquer intervenções em larga escala sobre os mecanismos de financiamento educacional precisam considerar o horizonte de médio e longo prazo, no qual se processam os verdadeiros impactos das políticas redistributivas. Não se trata apenas de ajustar fórmulas ou de premiar “bons resultados” episódicos, mas de constituir um ambiente institucional que permita o florescimento de práticas pedagógicas inovadoras, o enfrentamento das desigualdades territoriais e o fortalecimento da colaboração entre níveis de governo. Cumpre ressaltar ainda que o movimento paulista inscreve-se numa ambiência nacional em que as tensões federativas se avolumam, particularmente em razão das incertezas relativas ao novo Fundeb e da busca por modelos capazes de conjugar sustentabilidade fiscal, qualidade sistêmica e inclusão.

O desafio colocado, portanto, extravasa a apreciação técnica de uma nova metodologia de rateio e desafia a arquitetura federalista brasileira a compatibilizar, de forma criativa, a promoção da qualidade educacional com o imperativo ético da equidade. A experiência paulistana, caso aprovada e consolidada, poderá servir de laboratório para projetos análogos em outros estados da federação, mas também trará à tona, com força renovada, os dilemas centrais da justiça distributiva na educação: como calibrar incentivos ao desenvolvimento qualitativo sem sacrificar o direito dos territórios mais vulneráveis ao acesso a recursos compatíveis com suas carências? Como construir indicadores sensíveis à diversidade de contextos e capazes de captar avanços reais em aprendizagem, sem alimentar estratégias performáticas ou processos de estigmatização institucional?

Essas são indagações que ultrapassam fronteiras partidárias, exigindo, da academia, do parlamento, das redes de ensino e da sociedade civil, um engajamento qualificado, informado e aberto ao pluralismo. O desfecho deste debate em São Paulo será, inevitavelmente, um indicador do grau de maturidade democrática do país em matéria de políticas públicas educacionais, bem como do seu compromisso de reduzir desigualdades históricas em nome de um projeto de desenvolvimento inclusivo, plural e sustentável.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *