Por Marcelo Henrique de Carvalho

O Projeto de Lei da Anistia, em tramitação no Congresso Nacional, ocupa atualmente o epicentro de um intenso debate político, jurídico e filosófico brasileiro. A matéria, de linguagem técnica e isenta, propõe uma análise equilibrada dos principais aspectos históricos, argumentos positivos e negativos, e as implicações filosóficas relacionadas a esta proposição legislativa, que reacende fantasmas e esperanças da República.

Tramitação: uma urgência controversa

Na noite de 17 de setembro de 2025, a Câmara dos Deputados aprovou, pelo expressivo placar de 311 votos favoráveis, 163 contrários e 7 abstenções, o regime de urgência para o Projeto de Lei (PL) 2162/2023, de autoria do deputado Marcelo Crivella (Republicanos-RJ), que propõe conceder anistia aos participantes de manifestações de cunho político ocorridas entre 30 de outubro de 2022 e a data de entrada em vigor da lei. O requerimento de urgência retira a necessidade de apreciação em comissões técnicas, permitindo que o texto seja levado a plenário diretamente para votação, o que acelera consideravelmente sua tramitação parlamentar.

O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), defendeu a medida como um passo para a “pacificação nacional”, reiterando que não se trata de “apagar o passado”, mas de criar condições para reconciliação e diálogo. Em meio a protestos da oposição, que entoou palavras de ordem como “sem anistia”, a liderança da Casa prometeu indicar relator com a missão de articular um texto de consenso.

Delimitação e abrangência do projeto

O texto original, embora ainda sujeito a modificações, prevê anistia a ações supostamente movidas por motivação política e reivindicatória, abrangendo inclusive condenados pelos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023. Setores aliados ao ex-presidente Jair Bolsonaro defendem que o perdão alcance até mesmo o próprio mandatário, recentemente condenado a 27 anos de prisão por tentativa de golpe. O relator designado, deputado Paulinho da Força (Solidariedade-SP), acenou para a busca de um “meio-termo”, afastando a hipótese de uma anistia ampla e irrestrita e prometendo formalizar um texto que não seja nem de esquerda, nem de direita, mas orientado pelo interesse da pacificação nacional.

Apesar do avanço célere na Câmara, o cenário no Senado é mais complexo e hostil à anistia absoluta. Lideranças do Senado Federal, como Davi Alcolumbre e Otto Alencar, manifestaram resistência ao texto que, segundo eles, representa exagero e traz desconforto institucional. Nos bastidores, comenta-se que havia um acordo para que a discussão partisse do Senado, fato não respeitado pela condução do processo na Câmara.

Análise histórica: ecos da Lei de Anistia de 1979

A anistia, na tradição jurídica global, remete à ideia de esquecimento e perdão estatal de crimes cometidos em contextos excepcionais, usualmente de tensão política ou ruptura democrática. No Brasil, a Lei 6.683/1979, promulgada durante o regime militar, foi resultado de intenso embate entre demandas por justiça, redemocratização e interesses corporativos dos círculos militares. O dispositivo legal ficou conhecido como “ampla, geral e irrestrita”, contemplando tanto os perseguidos políticos quanto agentes do Estado responsáveis por crimes graves, como tortura e assassinatos em nome da repressão.

A aprovação, em 1979, foi saudada pelo retorno de exilados, mas também criticada como “cláusula da impunidade”, pois blindou agentes públicos de responsabilização, marcando um pacto de esquecimento. A construção de tal lei evidenciou uma lógica de transição negociada, característica de sociedades que optam por evitar rupturas institucionais e preservar uma paz social precária mediante recuos mútuos.

Aspectos filosóficos: memória, justiça e pacificação

A discussão filosófica a respeito da anistia opõe duas escolas principais. Uma, defensora do perdão estatal, vê na anistia instrumento hábil para a reconstrução e reconciliação nacional, permitindo que velhas feridas sejam superadas em prol de um futuro harmônico. Argumenta-se que, em situações de polarização, a anistia pode evitar ciclos intermináveis de retaliação, estabilizando o corpo político.

Em contraposição, uma abordagem pautada na justiça de transição sustenta que a reconciliação só é possível mediante enfrentamento pleno dos fatos e responsabilização pelos crimes cometidos, sobretudo quando esses atentam contra direitos humanos fundamentais e o Estado Democrático de Direito. A anistia, nestes termos, representaria a negação da justiça de vítimas e a perpetuação da impunidade.

No caso brasileiro, a experiência de 1979 é vista por vários estudiosos como exemplo paradigmático de conciliação mal resolvida, que dificultou, até hoje, a plena construção da memória histórica e dos mecanismos de accountability estatal. O debate atual revive tais dilemas, especialmente diante do contexto em que os crimes em discussão transcendem divergências políticas e tocam no cerne dos ataques às instituições republicanas.

Críticas positivas: pacificação e estabilidade

Entre os argumentos favoráveis à aprovação do projeto de anistia, destacam-se:

  • Busca pela pacificação nacional, em meio a uma sociedade polarizada.
  • Afirmação de que muitos dos participantes dos atos não incorreram em violência, sendo movidos por indignação e paixão política, não necessariamente por intenções golpistas.
  • Precedentes históricos: a anistia como remédio institucional após períodos de crise, encontrada em transições democráticas mundo afora.
  • Possibilidade de evitar novas ondas de instabilidade, à medida que a repressão judicial severa poderia alimentar hostilidades e dificultar a cooperação entre diferentes esferas políticas.

Críticas negativas: impunidade e riscos para a democracia

Por outro lado, intelectuais, magistrados e parcela significativa da sociedade civil alertam para graves riscos associados ao projeto:

  • Anistiar crimes que atentam contra a democracia, como tentativa de golpe, fragiliza a Constituição e incentiva novos ataques institucionais.
  • O perdão sem distinção entre atos violentos e manifestações pacíficas poderia abrir precedentes para futuras ações antidemocráticas impunes.
  • O projeto, ao abarcar figuras centrais como o ex-presidente condenado, é interpretado como movimento de autoproteção política e desmoralização do sistema judicial.
  • O clima de urgência atropela o debate técnico, minando a credibilidade do processo legislativo e ameaçando a necessária prestação de contas do Estado a seus cidadãos.

Perspectivas de tramitação e prognóstico

O futuro do projeto depende da habilidade de seu relator em articular um texto que atenda a expectativas distintas: pacificar sem ofender valores republicanos e democráticos. No Senado, a resistência é considerável, e líderes anunciam que qualquer redação que signifique anistia ampla provavelmente será rejeitada ou profundamente modificada.

Especialistas apontam ainda que a discussão tem dimensão simbólica elevada: o desfecho do PL da Anistia pode consolidar, uma vez mais, o padrão de transições negociadas do país, ou, ao contrário, inaugurar um novo ciclo de responsabilização institucional e amadurecimento democrático.

Conclusão: entre o passado e o futuro

O debate sobre a anistia, embora centrado em fatos recentes, invoca as marcas profundas da história nacional, de pactos entre elites, transições sem ruptura, e o permanente desafio de equilibrar pacificação e justiça. O passo dado agora pelo Congresso Nacional, e em última análise pela sociedade, determinará não apenas o destino dos atores envolvidos nos atos de 8 de janeiro, mas também a capacidade do país de enfrentar, com maturidade e transparência, seus dilemas recorrentes sobre impunidade, memória e reconciliação nacional.

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