Foto: SP Notícias
Por Marcelo Henrique de Carvalho
Na era dos excessos cognitivos e da superestimulação proporcionada por conteúdos digitais, a animação australiana “Bluey” emerge como um refúgio de sensibilidade, simplicidade e profundidade filosófica. Trata-se de um convite ao resgate da infância autêntica e da convivência familiar significativa, cujos efeitos vão além do mero entretenimento, revelando-se instrumento formador de valores e capacidades essenciais ao desenvolvimento humano.
Uma Série Minimalista e Radicalmente Humana
“Bluey”, produzida pela Ludo Studio em Brisbane, foi lançada pela Australian Broadcasting Corporation e pela BBC, conquistando premiações, reconhecimento internacional e, sobretudo, corações de crianças e pais em dezenas de países. Narrando o cotidiano da família Heeler, composta por Bluey, Bingo, Bandit e Chilli, a série se destaca pela opção estética do minimalismo: traços simples, cores harmoniosas, cenários cotidianos e episódios breves, mas densamente significativos.
Evita-se, assim, os artifícios de hiperestimulação sensorial presentes em muitos conteúdos infantis contemporâneos, conhecidos no jargão médico-pedagógico como “brainhots”. Tais produtos, que são vídeos curtos, acelerados e fragmentados ativam zonas de recompensa cerebral e criam dependência de dopamina, como mostram estudos recentes das neurociências. Suas consequências são devastadoras: déficit de atenção, irritabilidade, dificuldades de memória, empobrecimento das conexões neuronais e redução das habilidades sociais e criativas.
Em contraste, “Bluey” desacelera o tempo e celebra o ordinário. O ritmo do enredo, a musicalidade clássica, a repetição criativa das rotinas e o humor sutil compreendem uma pedagogia do olhar — contemplativa, aberta ao pensamento reflexivo e dialógico. Nada de efeitos hiperbólicos ou correria frenética: cada episódio convida o espectador, adulto ou criança, a habitar o presente, a perceber os detalhes e a dialogar com o próprio entorno.
O Jogo e a Filosofia: Brincar é Existir
A centralidade do brincar na vida das crianças Heeler ecoa princípios fundamentais da pedagogia moderna e remonta a questões filosóficas antigas sobre a natureza da infância. Episódios como “Carry” ou “Flat Pack” transformam situações triviais, montar móveis, carregar brinquedos, em pretextos para explorações imaginativas e resoluções criativas de conflitos, sempre envolvidas por afeto genuíno e humor fino.
A brincadeira, nesse contexto, é entendida não como fuga da realidade, mas como modo privilegiado de entrar em contato com a realidade em sua complexidade. O jogo é, para Bluey e sua família, laboratório de sentimentos, de valores e do exercício da alteridade. Essa abordagem se inspira na tradição filosófica de Platão e Aristóteles, para quem o lúdico era elemento constitutivo da educação do caráter.
Valores Familiares e Inteligência Emocional
Entrelaçado ao universo lúdico, há um ethos familiar pautado pela escuta, pela negociação e pela convivência intergeracional. Não se trata de uma família idealizada, imune ao cansaço ou às frustrações do cotidiano: Bandit e Chilli, os pais, também erram, falham e sentem o peso das responsabilidades, mas fazem de suas vulnerabilidades oportunidades para o diálogo aberto com as filhas.
São recorrentes na série episódios em que surgem dilemas morais, resolvidos sempre pelo exercício da empatia, do perdão e da cooperação. A convivência com avós, vizinhos e colegas de escola amplia o repertório social e ensina a criança que o mundo é feito de múltiplos pontos de vista. “Bluey” destaca o valor do tempo juntos: partilhar tarefas, brincar sem pressa, enfrentar desafios cotidianos lado a lado, vivenciar as alegrias e os desencontros.
Esse universo de relações afetuosas, honestas e praticadas no cotidiano é, segundo especialistas em psicologia do desenvolvimento, o terreno fértil da inteligência emocional e das competências sociais essenciais à formação humana ao longo da vida.
Bluey e Piaget: Uma Análise Genética do Desenvolvimento
A obra de Jean Piaget, expoente da epistemologia genética e do construtivismo, fornece uma lente privilegiada para interpretar a riqueza educativa de “Bluey”. No estágio pré-operacional (2 a 7 anos), as crianças (tal como Bluey e Bingo) desenvolvem linguagem, representação simbólica e raciocínio inicial, ainda centradas no próprio ponto de vista, mas já aptas ao jogo simbólico e à imitação.
Cada episódio da série é uma tessitura de situações onde as personagens enfrentam pequenas contradições e desafios (o ciúme de um amigo, a necessidade de repartir, o desejo de vencer, o medo de errar), com soluções que dificilmente passariam pelo caminho da imposição autoritária. Ao contrário, a família Heeler aposta na negociação, na escuta e na mediação, elementos-chave para o avanço do pensamento lógico e da moralidade autônoma, na perspectiva piagetiana.
Ao brincar, argumentar e combinar regras, Bluey e Bingo constroem estruturas de pensamento, categorizam experiências, assimilam e acomodam informações novas. A linguagem é sempre explorada como instrumento criativo: perguntas, hipóteses, pequenas ficções e jogos de faz-de-conta. A passagem do egocentrismo para a descentração, grande meta da infância para Piaget, desenrola-se diante do espectador, neste laboratório ético e relacional.
A Experiência do Teatro: O Desafio da Transposição Artística
O sucesso estrondoso de “Bluey”, do streaming para a TV aberta e das telinhas para o universo editorial, ressignifica-se em nova dimensão com sua adaptação para os palcos brasileiros. A temporada estreia no Teatro das Artes, em São Paulo, resultado do trabalho da Turbilhão de Ideias e de uma complexa engenharia de produção artística e pedagógica.
Transformar uma animação marcada pela simplicidade gráfica e pela naturalidade da voz em um espetáculo teatral exige um exercício radical de reinvenção: bonecos gigantes, cenários tridimensionais, sonoplastia ao vivo e, sobretudo, a manutenção da aura encantatória do original. Trata-se de equilibrar o fascínio visual com a necessidade de permitir que a criança espectadora seja também coautora da narrativa, mantendo espaço para a imaginação individual.
Essa transposição requer domínio técnico, que não se limita ao design dos figurinos, luz, coreografia, ou, até mesmo o cuidado com as proporções físicas dos atores e seus respectivos personagens, mas também sensibilidade filosófica: como recriar, em carne e osso, o sentimento de familiaridade e autenticidade que floresceu no desenho animado? Como potencializar, no rito coletivo do teatro, o aprendizado lúdico, a meditação dos valores e o convite ao jogo? O teatro, por sua natureza, amplia o caráter relacional da obra: cada apresentação é um encontro vivo entre artistas e plateia de todas as idades.

“Bluey” é, muito além de um fenômeno televisivo, uma resposta ética e pedagógica às inquietações do nosso tempo. Minimalista nas formas, maximalista em humanidade, a série australiana recupera o valor do ordinário, faz do brincar um ato filosófico e constrói, dia a dia, uma pedagogia da convivência e do afeto. Sua adaptação ao teatro brasileiro, amparada por políticas de incentivo cultural e pelo apoio imprescindível da Caixa, é nova etapa de um projeto artístico genuinamente comprometido com o desenvolvimento integral da criança. Por derradeiro, o lançamento do espetáculo no Brasil demonstrou tratar-se de um trabalho idealizado e escupido por “gente grande”, com substancial perspectiva de negócios (já está disponível uma linha completa de acessórios infantis com a estampa da atração), pensando, em todos os apectos em proteger e educar “gente pequena”. Uma simbiose cultural por meio da qual resta evidente a possível – e necessária – concilação entre Economia e Educação.
O convite é claro: apaguem-se, por um instante, os brilhos hipnóticos dos “brainhots”. Acendam-se, com Bluey, as luzes da imaginação, do afeto e da reflexão — porque, afinal, crescer é brincar e, brincando, aprender a ser.
Informações Úteis
Local: Teatro das Artes – Shopping Eldorado
Temporada: 04/10/2025 a 02/11/2025
Ingressos no www.eventim.com.br

