A Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo viveu um momento histórico no dia 18 de setembro de 2025, quando a professora Ana Elisa Liberatore Silva Bechara foi eleita para dirigir a mais tradicional escola jurídica do Brasil. Com esta eleição, ela se torna apenas a segunda mulher a assumir a direção da instituição em seus quase 200 anos de existência, um marco que simboliza tanto os avanços quanto os desafios persistentes na participação feminina nas mais altas esferas do direito brasileiro[1].

A Eleição Histórica de Ana Elisa Bechara

A eleição de Ana Elisa Bechara representa um momento de profundo simbolismo para a academia jurídica nacional. Concorrendo em chapa com Ronaldo Porto Macedo Junior como vice-diretor, ela conquistou uma expressiva vitória, obtendo 85 votos contra 60 da chapa adversária, formada pelos professores Gustavo Ferraz de Campos Monaco e Paula A. Forgioni. A nova gestão assumirá o comando da instituição de 21 de fevereiro de 2026 a 20 de fevereiro de 2030, período que coincidirá com as celebrações do bicentenário da faculdade em agosto de 2027[1][2].

A professora Bechara expressou sua emoção ao ser proclamada vencedora, declarando: “Estou muito feliz e honrada, nesse momento tão especial em que a São Francisco comemorará seu bicentenário! É muito simbólico que a Faculdade seja representada por uma mulher, a segunda nesses duzentos anos”. Sua fala ressalta a dimensão histórica de sua eleição, especialmente considerando que a instituição será dirigida por uma mulher durante as comemorações de seus 200 anos de existência.
Ana Elisa Bechara possui uma trajetória acadêmica sólida e internacional. Graduada, doutora e livre-docente pela própria Faculdade de Direito da USP, ela é professora titular de Direito Penal e já exercia o cargo de vice-diretora na gestão anterior (2022-2026). Sua formação inclui pós-graduação em Direito Penal na Universidade de Paris (1958-1959) e participação em grupos internacionais de pesquisa, incluindo projetos financiados pelos ministérios de Ciência da Espanha e Colômbia.

Suas principais linhas de atuação acadêmica abrangem teoria do bem jurídico penal, hermenêutica penal, combate à corrupção e questões de gênero e Direito. Esta última área de especialização ganha particular relevância considerando seu novo papel de liderança em uma instituição historicamente dominada por homens.

A Fundação da Faculdade de Direito da USP: Marco da Educação Jurídica Brasileira

Para compreender a dimensão histórica da eleição de Ana Elisa Bechara, é fundamental contextualizar a trajetória da Faculdade de Direito da USP. A instituição foi criada em 11 de agosto de 1827, por decreto do Imperador Dom Pedro I, simultaneamente com a Faculdade de Direito do Recife, marcando o nascimento do ensino jurídico nacional.

A criação dos cursos jurídicos no Brasil representou “o coroamento do ensino superior, dando início à emancipação do estudo jurídico brasileiro, antes vinculado à Universidade de Coimbra”. Até então, os interessados em estudar direito precisavam se deslocar para Portugal, uma limitação que a independência do país tornou insustentável.

A escolha do Largo de São Francisco para sediar a academia não foi casual. O local abrigava um convento franciscano com uma biblioteca de cinco mil volumes, recurso considerado fundamental para a formação de uma biblioteca pública na cidade. A primeira turma graduou-se em 1832, embora seis estudantes brasileiros transferidos de Coimbra tenham concluído seus estudos já em 1831.
Ao longo de quase dois séculos, a Faculdade de Direito da USP formou 55 ministros do Supremo Tribunal Federal, 13 presidentes da República, 45 governadores de São Paulo e 13 prefeitos da capital paulista. Esta impressionante galeria de ex-alunos demonstra a centralidade da instituição na formação das elites políticas e jurídicas brasileiras.

Ivette Senise Ferreira: A Pioneira

Ana Elisa Bechara segue os passos de Ivette Senise Ferreira, que em 1998 se tornou a primeira mulher a dirigir a Faculdade de Direito da USP. A professora Ivette, que faleceu recentemente aos 90 anos, representou uma quebra de paradigma fundamental na instituição mais tradicional do ensino jurídico brasileiro.
Ivette Senise Ferreira graduou-se pela própria São Francisco em 1957, numa época em que as mulheres eram uma pequena minoria entre os estudantes de direito. Segundo seu próprio relato, em uma turma de 300 alunos, havia apenas entre 50 e 60 mulheres. Após graduar-se, exerceu a advocacia por onze anos antes de ingressar na carreira acadêmica, tornando-se professora titular de Direito Penal.

Sua gestão como diretora (1998-2002) foi marcada pelo ineditismo e pela abertura de caminhos. Durante sua posse, ela foi saudada pelo professor Celso Lafer, e a cerimônia contou com a presença de autoridades como o então reitor Jacques Marcovitch e diversos secretários de estado. A professora Ivette permaneceu na instituição até sua aposentadoria e foi reconhecida como professora sênior, continuando a contribuir com a vida acadêmica da faculdade.

A Evolução das Mulheres no Direito Brasileiro

A trajetória das mulheres no direito brasileiro começou de forma tímida e enfrentou resistências significativas. A primeira mulher a se formar em direito no país foi Maria Augusta Saraiva, que ingressou na Faculdade de Direito da USP em 1898 e colou grau em 3 de maio de 1902, sendo a única mulher em uma turma de quinze formandos.
Maria Augusta Saraiva nasceu em São José do Barreiro, interior paulista, em 31 de janeiro de 1879. Durante a graduação, destacou-se tanto academicamente que ganhou uma viagem à Europa como premiação. Após formar-se, tornou-se pioneira também na advocacia, sendo a primeira mulher a atuar no Tribunal do Júri, defendendo réus em São Paulo e Jaboticabal e conseguindo absolvição em ambos os casos.

A presença feminina nas faculdades de direito cresceu lentamente. Na década de 1920, dos bacharéis formados nas “Arcadas”, 99,1% eram homens e apenas 0,9% mulheres. Nos anos 1940, a percentagem feminina ainda não ultrapassava níveis muito baixos, demonstrando a persistência das barreiras de gênero no acesso ao ensino superior jurídico.

O marco legal mais significativo para as mulheres na profissão jurídica foi a promulgação da Constituição Federal de 1988, que pela primeira vez reconheceu legalmente as mulheres como iguais aos homens. Este reconhecimento constitucional foi fundamental para abrir caminho para legislações posteriores de proteção e promoção dos direitos femininos.

O Cenário Atual: Avanços e Desafios Persistentes

Hoje, o panorama da participação feminina no direito brasileiro apresenta contrastes significativos. De acordo com dados da Ordem dos Advogados do Brasil, das 1.310.512 pessoas inscritas na OAB, 667.606 (51%) são mulheres, representando maioria na advocacia nacional. Este dado marca uma transformação histórica, considerando que a profissão foi por muito tempo dominada exclusivamente por homens.

No ensino superior como um todo, as mulheres conquistaram posição de destaque: representam 59,1% das matrículas na educação superior brasileira, percentual que vem crescendo consistentemente. Na última década (2013-2023), o percentual de mulheres matriculadas no ensino superior aumentou impressionantes 138,6%.

No entanto, quando se analisa especificamente a magistratura, os números revelam desafios persistentes. As mulheres representam apenas 38% da magistratura brasileira, e sua participação tem variado entre 35% e 46% nos últimos 20 anos sem tendência clara de crescimento. Mais preocupante ainda é que nas promoções para cargos de maior poder no Judiciário, a representação feminina cai para apenas 25%.

Na própria Faculdade de Direito da USP, os dados de 2024 mostram que as mulheres representavam 46% dos estudantes de graduação, 44% da pós-graduação, mas apenas 18% do corpo docente[21]. Ainda mais alarmante é o fato de que o número de docentes mulheres vem diminuindo: em 1998, elas representavam 23% do corpo docente, contra os atuais 18%.

Iniciativas de Valorização e Inclusão

Reconhecendo a importância de valorizar a presença feminina na instituição, a Faculdade de Direito da USP inaugurou em agosto de 2025 a “Galeria das Professoras”, localizada no primeiro andar do Prédio Histórico. A iniciativa, aprovada pela Congregação, visa valorizar a docência feminina na instituição e promover o interesse de estudantes e doutoras pela carreira acadêmica.

Ana Elisa Bechara também assumiu, em junho de 2025, a Diretoria da Área de Gênero, Relações Étnico-Raciais e Diversidades na Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento da USP. Este cargo adicional demonstra seu compromisso com políticas de inclusão e diversidade, áreas que ganharão particular atenção em sua gestão como diretora.

O Bicentenário e os Desafios Futuros

A gestão de Ana Elisa Bechara coincidirá com um momento único na história da Faculdade de Direito da USP: as comemorações do bicentenário da criação dos cursos jurídicos no Brasil, que ocorrerá em 11 de agosto de 2027. Para organizar este evento histórico, foi criada uma comissão presidida pela própria Ana Elisa Bechara e vice-presidida pelo professor Maurício Zanoide.

As comemorações representam uma oportunidade para reflexão sobre o passado e planejamento do futuro da instituição. Como declarou Ana Elisa em sua fala após a eleição: “Que possamos trabalhar todos juntos, professores, estudantes e funcionários, pelos 200 anos! Que possamos fazer a Faculdade ainda maior e mais protagonista nos grandes debates nacionais”.

Em seu programa de gestão, Ana Elisa e Ronaldo Porto Macedo Junior apresentaram 17 propostas focadas na governança ética, responsável e eficiente, com planejamento estratégico transversal e valorização de talentos. Entre os desafios que enfrentarão estão a modernização da infraestrutura, a ampliação da internacionalização e, particularmente relevante, o aumento da participação feminina no corpo docente e em posições de liderança.

Perspectivas e Reflexões

A eleição de Ana Elisa Bechara como segunda mulher a dirigir a Faculdade de Direito da USP em 200 anos de história representa simultaneamente um avanço significativo e um lembrete dos caminhos ainda a percorrer. Sua trajetória acadêmica sólida, experiência internacional e especialização em questões de gênero a posicionam de forma única para enfrentar os desafios contemporâneos da educação jurídica.

O fato de que, após 198 anos de existência, a instituição tenha tido apenas duas diretoras mulheres evidencia a persistência das desigualdades de gênero em posições de liderança acadêmica. Este dado ganha ainda mais relevância quando consideramos que as mulheres são maioria entre os estudantes universitários brasileiros e representam metade da advocacia nacional.

A gestão de Ana Elisa Bechara será observada não apenas pela comunidade acadêmica, mas por toda a sociedade jurídica brasileira, como um teste da capacidade das instituições tradicionais de se adaptarem aos novos tempos e promoverem a diversidade em suas estruturas de poder. Suas declarações iniciais sugerem um compromisso com a inclusão e com o fortalecimento do papel social da Faculdade de Direito da USP.

O bicentenário da faculdade, que será celebrado sob sua liderança, oferece uma oportunidade única de refletir sobre os progressos alcançados e os desafios futuros. Como segunda mulher a ocupar este cargo histórico, Ana Elisa Bechara carrega a responsabilidade não apenas de conduzir a mais tradicional escola de direito do país, mas também de inspirar futuras gerações de mulheres juristas e acadêmicas.

Sua eleição representa, em última análise, tanto uma conquista histórica quanto um passo importante – embora ainda insuficiente – na longa jornada em direção à verdadeira igualdade de gênero no ensino jurídico brasileiro. O sucesso de sua gestão poderá influenciar positivamente outras instituições a seguirem o mesmo caminho, contribuindo para um futuro mais inclusivo e representativo na academia jurídica nacional.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *