Por Marcelo Henrique de Carvalho

A sociedade contemporânea é marcada por um paradoxo que desafia os fundamentos mais caros da vida em coletividade: ao mesmo tempo em que o avanço tecnológico se converte em catalisador de novas formas de sociabilidade, de conhecimento e de produção de riquezas, este mesmo progresso cria abismos digitais que excluem vastas camadas da população do acesso às ferramentas mais elementares da era da informação. A exclusão digital, nesse sentido, não é apenas uma metáfora das desigualdades sociais, mas sua extensão e reconfiguração em um espaço intangível, porém decisivo, que é o espaço virtual. Aqui se encontra a raiz da questão que pretendo desenvolver: o acesso à informática e à internet deve ser concebido, não como privilégio, mas como direito fundamental, vinculado intrinsecamente à própria dignidade da pessoa humana.

É forçoso reconhecer que, desde a Revolução Industrial, cada ciclo de desenvolvimento tecnológico tem imposto à humanidade uma espécie de seleção velada, na qual os detentores das novas ferramentas se destacam em detrimento dos que ficam à margem. A era digital, inaugurada pelo advento da informática e consolidada com a popularização da internet, não apenas reproduziu esse processo, como o intensificou em escala global. A informação tornou-se a nova moeda de poder, e aqueles privados do seu acesso encontram-se em desvantagem não apenas econômica, mas também cultural, política e até mesmo existencial. Assim, negar a alguém o acesso à rede mundial de computadores equivale, em certa medida, a negar-lhe a possibilidade de participar do banquete civilizatório que define o século XXI.

Do ponto de vista jurídico-constitucional, há que se situar o problema em um terreno sólido. A Constituição Federal de 1988, que consagrou a dignidade da pessoa humana como fundamento da República (artigo 1º, inciso III), projeta sobre o ordenamento jurídico uma força normativa que transcende a mera letra da lei. Trata-se de um verdadeiro princípio estruturante, apto a irradiar eficácia sobre todos os direitos fundamentais, servindo como lente interpretativa da ordem constitucional. Ora, se a dignidade implica o reconhecimento do indivíduo como sujeito de direitos, dotado de autonomia e capaz de participar plenamente da vida em sociedade, como sustentar a sua plenitude em um contexto em que o acesso à informação digital é sonegado? A exclusão digital, nesse sentido, não é apenas uma carência material, mas uma violação direta à dignidade, pois priva o sujeito do exercício de sua cidadania em sua dimensão contemporânea.

É pertinente lembrar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, já havia antecipado o caráter central da informação ao proclamar, em seu artigo 19, o direito de “procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”. Ora, se a internet constitui hoje o meio por excelência de circulação de ideias, notícias e conhecimentos, negar-lhe a condição de direito fundamental seria um anacronismo inaceitável. Várias nações, aliás, vêm reconhecendo explicitamente esse estatuto: a Finlândia, por exemplo, incluiu em sua legislação a garantia de acesso à banda larga como direito básico de seus cidadãos, e a Organização das Nações Unidas já emitiu relatórios em que equipara o acesso à internet ao exercício de liberdades civis elementares.

Não se trata, é claro, de sustentar ingenuamente que a mera conexão à internet seja panaceia para as desigualdades históricas. O risco do tecnicismo ingênuo deve ser afastado. Contudo, é inegável que, sem o acesso aos meios digitais, qualquer política de inclusão social carece de eficácia plena. A educação, que é vetor insubstituível de emancipação, encontra hoje na tecnologia um de seus principais instrumentos. A administração pública, que se pretende mais transparente e acessível, desloca-se cada vez mais para plataformas digitais. O mercado de trabalho, por sua vez, exige competências informáticas como pré-requisito básico. E mesmo a vida privada, permeada por relações interpessoais mediadas por redes sociais e aplicativos, demonstra que a exclusão digital não apenas marginaliza, mas isola o indivíduo de sua própria comunidade simbólica.

Ao conceber a inclusão digital como direito fundamental, não se deve reduzi-la a um simples fornecimento de infraestrutura técnica. O problema é mais profundo. Exige-se uma política pública de caráter abrangente que contemple, além da universalização do acesso, a capacitação do indivíduo para o uso crítico e consciente das tecnologias. De nada adianta oferecer computadores ou conexão à internet se o usuário não dispõe de habilidades para transformar esse recurso em instrumento de libertação intelectual. O direito de acesso, portanto, deve ser compreendido como um feixe complexo que envolve conectividade, dispositivos adequados, educação digital e proteção contra vulnerabilidades próprias do ambiente virtual, como a desinformação, os crimes cibernéticos e a manipulação de dados pessoais.

Neste ponto, emerge uma reflexão relevante: a internet, ao mesmo tempo em que se revela espaço de liberdade, também se converte em terreno fértil para novas formas de opressão e exploração. A dignidade humana, portanto, não se satisfaz apenas com o acesso, mas com a garantia de que esse acesso não seja degradante, manipulador ou atentatório à autonomia da pessoa. A proteção de dados, a neutralidade da rede, a privacidade e a segurança digital configuram-se, assim, como dimensões indissociáveis do direito à inclusão digital. Afinal, o que seria da dignidade se, ao mesmo tempo em que se concede a chave de acesso ao universo informacional, expõe-se o indivíduo a algoritmos que manipulam sua consciência, a empresas que mercantilizam sua intimidade ou a agentes que disseminam o ódio e a desinformação?

No plano filosófico, é inevitável evocar o pensamento de Jürgen Habermas, ao tratar da esfera pública como espaço de deliberação racional e de formação da opinião e da vontade coletiva. A internet, em sua configuração mais nobre, seria a atualização dessa esfera pública em escala planetária. No entanto, quando parcelas da população são alijadas desse espaço, rompe-se a universalidade necessária para que o discurso democrático se realize plenamente. A exclusão digital, assim, mina a própria ideia de democracia deliberativa, criando uma cidadania de duas velocidades: a dos incluídos, que participam, opinam e decidem, e a dos excluídos, que apenas assistem, silenciados, ao desenrolar dos acontecimentos.

É nesse horizonte que se deve compreender o acesso à informática e à internet como direito fundamental. Não se trata de mero discurso retórico, mas de uma exigência concreta da realidade contemporânea. A dignidade da pessoa humana, valor fundante da Constituição, não pode ser reduzida a uma abstração formal. Deve se materializar em condições efetivas que permitam ao indivíduo florescer em sua integralidade. Na era digital, esse florescimento passa necessariamente pela inclusão tecnológica.

Cabe, portanto, ao Estado o dever inescapável de formular e executar políticas que assegurem a universalização do acesso digital, especialmente às camadas mais vulneráveis da população. Cabe à sociedade civil, por sua vez, a vigilância constante para que o espaço virtual não se transforme em arena de novas formas de dominação, mas em ambiente de emancipação e pluralidade. E cabe à comunidade internacional reafirmar o caráter universal desse direito, evitando que o mundo digital se converta em mais uma fronteira de desigualdade entre Norte e Sul globais.

Concluo, assim, afirmando que negar o acesso à informática e à internet é negar ao ser humano o pleno exercício de sua cidadania, de sua liberdade e de sua própria dignidade. Se a dignidade é o núcleo irradiador dos direitos fundamentais, a inclusão digital é, em nosso tempo, uma de suas expressões mais urgentes. Não se trata apenas de conectar máquinas, mas de conectar pessoas à sua própria humanidade, pois, no século XXI, estar desconectado é estar ausente, invisível e, em última análise, excluído da própria história.

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