
O cenário que experimentamos atualmente é marcado pela abundância de dados, conectividade global e acesso sem precedentes à informação. Paradoxalmente, essa hiperinformação, longe de promover maior acuidade intelectual, tem gerado fragmentação cognitiva, polarização ideológica e superficialidade no debate. Diante desse contexto, ouso destacar a guarida na Filosofia, como ferramenta crítica para resgatar a capacidade humana de pensar de maneira equilibrada, integrando múltiplas perspectivas culturais e científicas. Defendo que, para enfrentar os desafios da atualidade — caracterizados por excesso de estímulos e escassez de reflexão —, é imperativo cultivar um pensamento equilibrado, ancorado em um arcabouço cultural amplo e interdisciplinar, inerente a cada indivíduo, como células únicas de sintetização de dados genéricos em cultura e sabedoria.
A ideia de equilíbrio intelectual não é nova. Desde Aristóteles, que propôs a “virtude” como ponto de equilíbrio entre extremos, até a noção Kantiana de “esclarecimento”, como coragem para pensar criticamente, a Filosofia sempre buscou harmonizar racionalidade e sensibilidade. No entanto, o ideal de equilíbrio não significa neutralidade passiva, mas a habilidade de reagir com temperança diante das informações adquiridas, fazendo do acervo cultural individual um grande filtro para um adequado julgamento do que, de fato, deve ser absorvido e o que deve ser descartado.
No contexto contemporâneo, esse equilíbrio exige mais do que domínio técnico, ou conhecimento específico. Demanda, na verdade, sabedoria cultural, no mais puro mergulho etimológico que remonta à evolutiva “sapore, sapere”, por meio do qual o acervo cultural apenas pode ser construído mediante um fluxo positivo e constante de experiências. Um pensador equilibrado é aquele que, inspirado pela Filosofia, Literatura, História, enfim, pelas artes e pelas ciências, consegue contextualizar informações e discernir padrões complexos. Como observou Isaiah Berlin, a verdadeira erudição não está na especialização estreita, mas na capacidade de “ver conexões onde outros veem apenas caos”, em eficaz exercício ontológico.
A cultura, entendida como o conjunto de conhecimentos, valores e práticas acumulados pela humanidade, funciona como um anteparo eficaz contra a desinformação e o pensamento lastreado no senso comum. Quando um indivíduo possui familiaridade com diferentes épocas, correntes filosóficas e expressões artísticas, desenvolve um repertório que lhe permite, dentre outras habilidades, relativizar conceitos absolutos, reconhecer falácias, que encerra no cultivo de uma cognição aguçada e preparada para a avalanche de informações tão comuns em tempos atuais.
Nesse sentido, a história mostra que ideias tidas como incontestáveis em uma época podem ser questionadas em outra. A Lógica Aristotélica, a Dialética Hegeliana e os métodos críticos da Escola de Frankfurt oferecem ferramentas para desmontar discursos manipuladores, o que possibilita uma leitura com senso crítico mais apurado e, sobretudo, imune a determinados sofismas verificáveis pela retórica, porém insubsistentes ao crivo da virtude.
Aliás, não é demais frisar que o caleidoscópio da virtude nunca foi tão necessário quanto nos dias atuais. Relativizada a partir de Descartes, a virtude definida pelos filósofos clássicos, traduzida, em apertada síntese, pela compreensão, vivência e crescimento a partir da dor e da profunda interiorização do correto que se sobrepõe ao agradável, no exercício da busca pela verdade, tal como preconizado por Sócrates. Em, Aristóteles, por exemplo, a importância da prática, dos atos virtuosos, e efetivamente superior ao seu conhecimento, ou sua definição no plano das ideias.
Justamente por isso, sociedades que se baseiam na insana busca pela felicidade não lastreada na nobreza de atitudes, tendem a uma moralidade vazia, desprovida de valores pautados pelo bem da coletividade e, cada vez mais, arraigada em conceitos individualistas e, portanto, geradores de rupturas. Não à toa, quanto mais a sociedade vem “evoluindo”, mais nos deparamos com agrupamentos (familiares?) paulatinamente menores e progressivamente mas isolados.
Nesse sentido, a fuga da verdade – que é naturalmente dolorida – encontra eco na mentira como mecanismo de perseguição de uma felicidade intelegível e, muitas vezes utópica. Esse processo, tomado de forma contínua e cada vez mais divorciada da realidade, mediante mecanismos de sofismas sofisticados, acaba induzindo a própria neurose, gênese de diversas perturbações que tanto tem acometido as atuais gerações.
Como estamos refletindo há tempos, a tecnologia democratizou o acesso ao conhecimento, mas também criou labirintos supostamente intransponíveis. As redes sociais, otimizadas para engajamento, privilegiam conteúdos emocionalmente carregados, sempre resumidos a conclusões binárias (bem/mal, certo/errado), com forte tendência à superficialidade e, principalmente, a condução (quase coercitiva) à concordância ou discordância, diretamente impulsionada de forma indireta pelos mecanismos regentes, por trás das redes. Esse ambiente favorece o que Byung-Chul Han chamou de “violência da positividade”: uma saturação de estímulos que desestimula, ou até mesmo, paralisa a reflexão profunda, criando nas massas a pseudo impressão de excesso de afazeres, quando, na verdade, o que lhes preenche são meras e banais trocas de telas. Tudo isso sem olvidar da capacidade progressivamente incrível de dar azo a cenários oníricos, inverídicos, induzindo ao estabelecimento de uma nova e paralela realidade, verificável apenas dentro das redes.
Nesse contexto, a falta de um repertório cultural amplo e denso acaba por dar aos “zumbis das telas” um falso empoderamento, caracterizado pela ilusão do conhecimento, bem como pela fragmentação da realidade. Situações que se não fossem tão trágicas poderiam ser cômicas, sobretudo pelo nível de ignorância das massas, que tem atingido culmes inéditos.
Plataformas como YouTube, Instagram, por exemplo, oferecem resumos rápidos de temas complexos, dando a falsa impressão de domínio sobre assuntos que exigiriam anos de estudo. Volta e meia é comum encontrarmos “doutores” diplomados nas redes sociais, discorrendo verdadeiros absurdos sobre vários assuntos, ensinando conceitos equivocados e, muitas vezes, produzindo conteúdos mais atrativos para o grande público do que os verdadeiros experts no assunto.
A personalização de feeds e recursos audiovisuais cada vez mais instigantes acabam por desviar o foco da temática abordada, reduzindo a capacidade crítica e impedindo o contato com visões de mundo divergentes, promovendo terreno fértil para o radicalismo e o extremismo. Com isso, uma sociedade cada mais desprovida de profundidade cultural, acaba se rendendo às chamadas trends e relegando a segundo plano os conteúdos realmente enriquecedores. E esse movimento, ao contrário do que se pode vislumbrar, não é novo, muito menos inédito. Esses sofistas contemporâneos entendem residir na palavra o poder para criar e “deletar” qualquer coisa, o que não é válido.
As coisas em si, as res, habitam apenas o plano da verdade, o qual apenas poderá ser acessado pelo exercício da virtude, tal como observava Sócrates, na Grécia Antiga. Entretanto, como já mencionado, o compromisso com a verdade impõe algumas dores que nem todos estão dispostos a enfrentar, refugiando-se nas realidades paralelas, muitas vezes de forma neurótica.
Para contrapor-se a isso, não é de hoje que defendemos ser imperioso o ingresso da intelectualidade nos universos digitais, ainda que em nítida desvantagem de meio. Claramente, quando produzimos conteúdos voltados para o grande público das redes, não dispomos dos apelos chamativos, nem das mesmas ferramentas que tem o condão de “viralizar”, como se costuma dizer no léxico próprio. Entretanto, por óbvio, esse tipo de sucesso está bem distante de nossa pretensão. Ao contrário, entendo que é dever de todo escritor, pensador, ou professor, lançar mão das ferramentas que dispõe nesta criação de contrapontos, em nome da Educação e da formação das pessoas.
A solução não está em rejeitar a tecnologia, ao contrário. Devemos utilizá-la a favor do conhecimento, sobrepondo-nos a ela e demonstrando, indubitavelmente, que a diferença de uma caneta tinteiro para um sofisticado ultrabook está ligada apenas à sua constituição formal, ou ao tipo de tecnologia adotada, e que, na essência, ambas são apenas ferramentas a serviço da humanidade. E, por tudo isso, em tempos de inteligência artificial, é imperioso demonstrar e deixar bastante evidenciado que todos os recursos, por mais modernos e completos que possam parecer, estão sempre a serviço instrumental das pessoas, sendo inadequada qualquer tipo de interação que contrarie essa lógica.
É nessa linda que defendemos a difusão e o estudo da Filosofia, que, desde a Grécia Antiga, treina a mente para questionar pressupostos, tal como ocorre no Método Dialético, caracterizado pela elaboração de uma tese, sua contraposição por meio da antítese, com uma conclusão sintética e arrebatadora. Um verdadeiro antídoto contra o pensamento binário, que foi, inclusive, de extrema eficácia em tempos tão desafiadores quanto os nossos, ao longo da História. Prova disso são os célebres sermões do Padre Antônio Vieira, de importância crucial para o desenvolvimento do Brasil.
Como defendia Edgar Morin, a complexidade do mundo moderno exige abordagens transdisciplinares. É imprescindível que um engenheiro estude Ética, que um médico domine Literatura, ou que um economista compreenda Sociologia. Na mesma linha, o memorável comando de Eros Grau, mencionando os alfarrábios jurídicos, o qual declina que não se deve interpretar o Direito em tiras, aos pedaços. Ao contrário, toda ciência – por mais segmentada que possa ser – deve ser aplicada pelo todo, de forma conjunta. E é exatamente essa complexidade que se espera no tempo contemporâneo.
Na chamada Era do Ruído, ao contrário do que previam os mais futuristas ou as obras de ficção, o intelecto humano nunca foi tão solicitado, em especial no contexto de uma geração que tem relegado o pensamento para poucos. Pois são exatamente esses poucos que precisam estabelecer a ontologia acima delimitada, inter-relacionando pessoas, culturas e ciências, conduzindo a coletividade para um espaço distante das dicotomias e das polarizações que induzem o posicionamento binário do sim ou não.
A demanda por um pensamento equilibrado não é apenas acadêmica. Trata-se de uma questão de sobrevivência do ainda sapiens ser humano. Em um mundo onde inteligências artificiais geram discursos persuasivos e deepfakes desafiam a noção de realidade, a capacidade de pensar com profundidade e amplitude cultural torna-se um escudo contra a manipulação.
Por derradeiro, não poderia deixar de mencionar a reflexão de Hannah Arendt, para quem a banalidade do mal surge quando indivíduos abdicam de seu juízo crítico. Em outras palavras, trata-se de uma releitura contemporânea do Contrato Social de Rousseau, em especial quando culpa o vizinho que se quedou inerte quando erguida a primeira cerca. Reverter essa tendência exige que reconectemos nossa era à riqueza do legado cultural humano, não como saudosismo, mas como ponte para um futuro no qual informação e sabedoria coexistam.
Afinal, como ensinou Sócrates, uma vida não examinada – portanto não compromissada com a verdade – não vale a pena ser vivida, sendo perfeitamente possível inferir que uma sociedade limitada, subjugada e conduzida por mecanismos que vem minando sua inteligência, pode estar fadada à ignorância autodestrutiva.