Quando se vislumbra estudar os mais variados sistemas de saúde ao redor do globo, depara-se com questões de intensa discussão, algumas ainda bem distantes de uma convergência geral e outras já difundidas e até bem aplicadas. Como entendo que a dúvida é a propulsora do conhecimento, lanço uma provocação acadêmica sobre tema bastante recorrente em discussões, mas ainda pouco estudado mais profundamente, até mesmo pelo caráter polêmico de suas reflexões. Trata-se da globalização do atendimento em saúde, sobretudo da Medicina. 

Como é de cognição geral, o ser humano é o mesmo em absolutamente todos os lugares do mundo. Em que pesem as diversas manifestações culturais que influenciam na alimentação e outros elementos, como a própria gastronomia – que pode gerar alterações sazonais e pontuais – a pessoa, em seu espectro biológico, é exatamente igual nos quatro cantos do globo. Justamente por isso, os programas de pós-graduação em Medicina, por exemplo, os chamados MD, ou Medicine Doctor, são carimbos das mais variadas grifes universitárias que chancelam diplomas de médicos de vários países. E esse intercâmbio é visto com excelentes olhos tanto por parte da comunidade acadêmica, quanto pela população em geral. 

Na mesma linha, as patologias também são internacionais. Nesse sentido, a Pandemia da Covid-19 ensinou ao mundo que um vírus insignificante do ponto de vista material, imperceptível a olho nu, ceifou milhares de vidas ao redor do mundo, mesmo tendo sido observado, inicialmente, apenas em uma cidade do interior da China. Isso nos permite concluir que enquanto os patógenos são globalizados facilmente por uma reprodução em progressão geométrica, os seus maiores antagonistas (médicos e outros profissionais da saúde), em geral, ficam restritos a nichos regionais artificialmente criados por agremiações muitas vezes corporativistas, sempre escorados em legislações obsoletas criadas mais para defender interesses classistas do que na promoção da saúde pública. 

No Brasil, por exemplo, o sistema de atenção à saúde – nas linhas da Constituição Federal de 1988 – é regido pelo Princípio da Universalidade. Em apertada síntese, em seu contrato social, o Estado obrigou-se a prestar atendimento integral a toda e qualquer pessoa que lhe bater às portas em busca de atendimento. Entretanto, na concretude do cotidiano nacional, o que se vê é uma rede concentrada nos grandes centros, restando uma escassez de médicos, remédios e insumos que castiga, principalmente, as regiões mais longínquas do território nacional. A contrario sensu, milhares de estudantes brasileiros formam-se médicos no exterior e, quando regressam, são obstados pelo chamado REVALIDA, ao exercício da Medicina. Um preciosismo xenofóbico da legislação brasileira que, além de negar a globalização do conhecimento, cerceia à população dos rincões mais distantes o direito de receber atendimento qualificado por esses profissionais sedentos para trabalhar e desempenhar a profissão para a qual estudaram.

Trata-se de uma violência institucional de caráter dúplice. Aos cidadãos que não contam com atendimento decente em várias regiões do Brasil, sobretudo as mais pobres e, por consequência, as que mais precisam. De outro lado, aos estudantes, os quais – na grande maioria das vezes – deixam o Brasil para estudar em escolas de Medicina com valores mais acessíveis no exterior e, quando voltam, restam impedidos de exercer a profissão para a qual foram preparados para atuar. Justamente por isso, muitos egressos de cursos médicos do exterior tem se socorrido no Poder Judiciário, o qual – ao ser provocado por o intermédio de competentes argumentos advocatícios – certamente acolhe a justa pretensão dessas pessoas. 

Enquanto isso, o Estado não poupa esforços para facilitar a vida dos formados no Brasil com pretensões de cursar programas de pós-graduação no exterior, como disse no início do texto. Exemplo disso é a Lei Federal n. 1.3270/16, a qual determina seja eliminada a expressão “Bacharel em Medicina” nos diplomas emitidos no Brasil. O termo, segundo a lei, deve ser “Médico” e a justificativa da substituição está exatamente na facilitação do trâmites de admissão dos médicos brasileiros nos programas de pós-graduação no exterior. 

Inevitável a pergunta: por onde anda o Princípio da Isonomia, incrustado e consagrado nas pétreas letras do art. 5, caput, da Constituição de 1988? Se a resposta vier – o não será uma tarefa fácil -, proponho apenas uma segunda reflexão: e sobre a tal supremacia do interesse público? Vale refletir e, sobretudo, agir para, dentro da parte que nos cabe, fazer o possível para mitigar essas injustiças.

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