
O chamado Dia da Criança, comemorado no Brasil aos 12 de outubro por força de um dispositivo legal editado há anos, fora idealizado dentro do erário lúdico dos infantes que brincavam de roda e se aglutinavam em torno dos palhaços em busca daquela balinha mais do que especial. Aos que não completavam ano entre a segunda quinzena de outubro, novembro e a primeira quinzena de dezembro, sempre foi a última oportunidade de presente antes do Natal. Presente de criança, diga-se de passagem.
As crianças que brincavam de roda, pulavam nos brinquedos coletivos e se entretinham com o palhaço Bozo e a Vovó Mafalda eram vestidas de forma pueril e, principalmente, presenteadas da mesma forma. Não à toa, as lojas especializadas lucravam severamente neste período. E, até mesmo, os adultos acabavam entrando nas brincadeiras e se fazendo um pouco de crianças, sempre na companhia de muita pipoca, algodão doce e sorvete, porque em outubro faz calor no Brasil.
Afirmar que eram bons tempos não posso, sob pena de trair minha alma não saudosista. Mas posso inferir que eram bastante diferentes do que se observa na contemporaneidade. Confesso que, quando criança, não era o maior dos fãs de pipoca, passava longe do cachorro-quente e já preferia os sorvetes de massa aos picolés distribuídos nas festas. Mas isso não me torna suspeito para externar, de forma condoreira, minha crítica à mecanização das pessoas e consequente massificação – pela tábula rasa, diga-se de passagem – das pessoas.
A crescente tecnologia – muitas vezes insana – vem transformando as crianças em seres cada vez mais ensimesmados, imersos no mundo das telas e, progressivamente, mais distantes do mundo real e concreto das pessoas. Trata-se de um crescente movimento que está unindo pessoas ao redor do mundo às custas de tornar mais solitárias cada uma dessas em seus respectivos lares. E no caso das crianças e adolescentes, prova maior são os moderníssimos cloud games, por meio dos quais modernos televisores transformam-se em consoles de video-game com suporte a milhares de jogadores, online, por meio da Internet, mas apenas a conexão de um controle físico, impondo a solidão do jogador humano, real e palpável.
Se retornarmos poucos anos, os aparelhos de diversão eletrônica ligados às TVs das residências eram agregadores de pessoas. Todos os interessados na vizinhança, de várias idades, compareciam às casas daqueles que adquiriam os lançamentos do Atari, MasterSystem, MegaDrive, Super Nintendo, entre outros clássicos. Mas, com o advento da rede mundial de computadores, até mesmo as diversões infantis passaram a ser globalizadas. As casas cheias, aos finais de semana, deram lugar às crianças submersas no mundo de suas telas, cada vez mais sofisticadas, em um universo cada vez mais virtual.
É impossível – e também inviável – conter a tecnologia e seus avanços. Por isso acho tão vã essa implicância quase combativa com a inteligência artificial. Não adianta nem evitar, nem, tampouco, tentar ignorar ou “proteger” as crianças por meio de barreiras tolas ou, até mesmo privações. A melhor proteção está no diálogo, dentro daquela antiga, porém infalível, união família-escola. Afinal, não se pode negar que será diante das telas que as crianças de hoje irão trabalhar, interagir, estudar, etc. Por isso, sempre, a Educação é a grande iluminadora de qualquer desafio nesse sentido. O grande desafio, necessário e assertivo para o futuro, é preparar as crianças e adolescentes para esse universo cada vez mais virtual e matricial.
Aos avanços da tecnologia, indico uma teoria ventilada em tempos tão longínquos que nem mesmo seus sábios viventes poderiam prever o que hoje se observa. Trata-se da Teoria da Temperança, de Aristóteles. Uma reflexão de séculos atrás, ainda tão moderna, a ponto de gerar inúmeras lições em 2023. Uma teoria que discute a importância do equilíbrio, esse bem imaterial quase utópico nas conturbadas sociedades do século XXI. Apenas o equilíbrio poderá deixar o ser humano sempre no controle de suas criações. E, principalmente, muito mais importante do conseguir controlar é compreender que absolutamente qualquer equipamento apenas tem serventia se estiver a serviço das pessoas.
Em mais recente reflexão, de 2022, Hollywood lançou o longa-metragem M3GAN, classificado como uma ficção-científica dentro do terror. Em apertada síntese, uma cientista especialista em robótica e inteligência artificial cria uma boneca para ser o brinquedo de sua sobrinha. Mas, por falta de equilíbrio quando da inserção de elementos humanos no protótipo, o brinquedo acabou se tornando um pesadelo. Uma discussão profunda, principalmente, quando traz o conceito de perda do controle do Homem para a máquina, justamente pela inserção de comandos subjetivos na inteligência artificial.
Mesmo no plano da ficção, é muito importante que as crianças de hoje estejam educadas e devidamente preparadas para dar continuidade ao domínio Humano sobre os elementos de tecnologia. As máquinas estão – e sempre deverão estar – a serviço das pessoas, atendendo comandos e tendo suas performances caracterizadas pela objetividade. Trocando em miúdos, não contra o contato da tecnologia com as crianças, ao contrário. Apenas entendo que esses dispositivos, nas mãos delas, devem limitar-se ao papel de mais um dos seus brinquedos. Por isso, o borderline está na capacidade da criança em preservar a sua infância, a interação com a família e os colegas, ainda que por perto tenha uma tela. Quando o gadget sequestra a subjetividade do infante, é tempo de parar e recomeçar.
Assim, desejo, com todo o meu carinho, um Feliz Dia das Crianças a toda essa meninada que, daqui a poucos anos, estará tomando conta de todos nós. Por isso, cabe aos pais e mestres permanente linha de atenção e cuidado. Afinal, todas as vezes que muda o modo de “ser criança”, a resposta adulta deve vir pela atualização no “cuidar de criança”.