O Dia dos Professores, celebrado em 15 de outubro, ganha neste ano um significado ampliado e duplamente simbólico. Além de homenagear a figura do educador e o papel transformador da docência, a data marca também os 115 anos de nascimento de Antonio Houaiss — diplomata, linguista, tradutor e um dos maiores intelectuais brasileiros do século XX. A coincidência entre as duas comemorações ilumina a trajetória de um homem cuja obra atravessa as fronteiras da educação, da cultura e da política, reafirmando o valor do conhecimento como instrumento de emancipação humana.

Antonio Houaiss nasceu em 1910, no Rio de Janeiro, e construiu uma das carreiras mais extensas e multifacetadas da vida intelectual brasileira. Tornou-se imortal da Academia Brasileira de Letras, colaborou em instituições de ensino e cultura, exerceu atividades diplomáticas e foi figura central na elaboração de projetos linguísticos que ajudaram a consolidar a identidade da língua portuguesa no Brasil contemporâneo. Seu nome está gravado na história, sobretudo, pela monumental empreitada que resultou no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, obra de referência que sintetiza décadas de pesquisa e erudição.

O legado de Houaiss, contudo, vai muito além das páginas do dicionário. Ele foi, antes de tudo, um professor. Um educador no sentido mais amplo, que encarava o ensino e a linguagem como ferramentas de formação cidadã. Sua trajetória intelectual foi marcada por um compromisso com a clareza, com o rigor e com a democratização do acesso ao saber. Em cada texto, palestra ou projeto, Houaiss procurava ampliar os horizontes do leitor comum, combatendo o elitismo cultural e defendendo a ideia de que o domínio da língua era condição necessária para o exercício pleno da cidadania.

No contexto atual, em que a educação atravessa desafios profundos e o valor do magistério é novamente colocado em debate, revisitar a figura de Antonio Houaiss no Dia dos Professores representa mais que uma homenagem retrospectiva. É um convite à reflexão sobre o sentido do ensinar e aprender em um país que ainda luta para fazer da palavra instrumento de inclusão e transformação social. Houaiss acreditava que a língua é o espelho da nação, e que dela decorre a possibilidade de se pensar criticamente o mundo. Para ele, dominar o idioma significava não apenas comunicar, mas compreender e intervir na realidade.

A relevância de sua obra torna-se ainda mais evidente quando inserida no contexto de seu tempo. Houaiss viveu um século de rupturas profundas — duas guerras mundiais, regimes autoritários, transformações tecnológicas e culturais — e sua obra foi marcada por essa consciência histórica. Participou ativamente de debates sobre política linguística, defendeu o acordo ortográfico como instrumento de integração entre os países lusófonos e promoveu o diálogo entre a tradição filológica e as demandas contemporâneas da comunicação. Seu trabalho como tradutor, especialmente de autores clássicos e modernos, revelou um esforço constante de aproximação entre culturas, alargando o horizonte de significados da língua portuguesa.

Celebrar seus 115 anos significa também lembrar de um intelectual que nunca dissociou conhecimento de compromisso social. Desde jovem, Houaiss compreendeu a importância da educação pública e das políticas culturais como pilares de uma sociedade democrática. Sua atuação no Ministério da Educação, nos anos 1950, e posteriormente no Itamaraty, reforçou essa visão. Fora das instituições, participou da elaboração de projetos editoriais e linguísticos que buscavam tornar o saber acessível a um público amplo, antecipando preocupações que hoje se estendem aos debates sobre inclusão digital e democratização do aprendizado.

O Dicionário Houaiss, publicado postumamente, é talvez o símbolo máximo de sua dedicação à pesquisa e à precisão linguística. A obra, que contou com a colaboração de uma equipe multidisciplinar, representa mais que um registro lexical; é uma cartografia cultural do idioma. Cada verbete revela o traço de um pesquisador minucioso, atento às variações regionais, às evoluções semânticas e às influências históricas que moldaram o português brasileiro. O dicionário, além de ser instrumento acadêmico, democratiza o acesso à norma culta da língua sem excluir suas diversidades, reafirmando a pluralidade como riqueza e não como defeito.

Para os professores contemporâneos, a figura de Houaiss oferece inspiração e exemplo. Ele personificava a resistência à simplificação do pensamento, defendendo o valor da leitura, do estudo e do debate como práticas formadoras. Em tempos de rápidas transformações tecnológicas e de discursos que frequentemente reduzem o conhecimento a mera utilidade, revisitar o pensamento de Houaiss é redescobrir o ideal humanista do ensino — aquele que vê o saber como bem público e a palavra como ponte entre o indivíduo e o coletivo. O professor, nessa perspectiva, é o guardião da memória e do futuro, capaz de mediar o diálogo entre a tradição e a invenção.

No ambiente educacional atual, marcado por precariedades estruturais e desafios pedagógicos, a lembrança do autor reforça a urgência de políticas que valorizem a docência não apenas com salários dignos, mas com reconhecimento social e cultural. Houaiss entendia a educação como forma de resistência e acreditava que o conhecimento deveria ser construído de forma livre e crítica. Sua própria trajetória é testemunho desse ideal: autodidata em muitos aspectos, erudito sem ostentação, foi alguém que fez do saber uma ferramenta de convivência e diálogo.

Em entrevistas e textos de caráter ensaístico, Houaiss insistia na ideia de que a linguagem é o maior patrimônio coletivo de um povo. Para ele, estudar o português era, antes de tudo, estudar a história do Brasil e a experiência humana inscrita nas palavras. Essa visão integradora perpassa toda a sua obra e continua inspirando gerações de professores de língua e literatura. Celebrar seu nascimento no mesmo dia em que se homenageia a docência destaca simbolicamente essa simbiose entre o pensar e o ensinar, entre a palavra e o gesto pedagógico.

As comemorações deste ano, realizadas em universidades, escolas e instituições culturais, evocam não apenas a memória de Houaiss, mas também sua permanência. Em tempos de fragmentação e volatilidade cultural, a consistência de sua obra intelectual parece ainda mais necessária. O estudioso do léxico, o diplomata da língua e o educador da palavra deixaram lições que dialogam diretamente com as inquietações contemporâneas: a valorização da diversidade linguística, a importância da precisão e o compromisso ético com o conhecimento.

A data convida também a uma reflexão sobre o papel da língua na construção de identidades. Houaiss via a norma culta não como instrumento de exclusão, mas como um horizonte de inclusão, capaz de nivelar as oportunidades de acesso ao saber. A língua, dizia ele, é viva e mutável, e seu estudo só faz sentido se reconhece e valoriza as vozes que a compõem. Esse olhar diverso e plural foi o que permitiu ao dicionário tornar-se referência tanto acadêmica quanto cultural, atravessando fronteiras geográficas e geracionais.

Relembrar Houaiss no Dia dos Professores é reconhecer a interdependência entre o mestre e o verbo. Um alimenta o outro: sem o educador, a língua se perde; sem a palavra, o ensino perde direção. A coincidência das datas parece ecoar um princípio que o próprio linguista defenderia com convicção — o de que ensinar é também traduzir, e cada aula é uma forma de reinventar o idioma e reinventar o país. O professor, ao falar, inscreve-se na continuidade da língua, perpetua uma herança cultural e reescreve a história comum das ideias.

Comemorar seus 115 anos, portanto, é mais do que revisitar o passado de um erudito. É reafirmar uma visão de mundo fundada na crença de que o conhecimento deve ser universal e emancipador. Em uma sociedade cada vez mais fragmentada por desinformação e intolerância, a lição de Houaiss sobre o poder civilizador da linguagem permanece atual e essencial. O dicionário que leva seu nome é hoje acessado por estudantes, escritores e professores de diferentes gerações, prolongando o ato pedagógico de seu criador em cada consulta e em cada palavra buscada.

O Dia dos Professores deste ano, ao coincidir com sua efeméride, oferece uma rara oportunidade de reconciliação simbólica — a união entre quem ensina e o que se ensina. A vida de Antonio Houaiss demonstra que o verdadeiro professor não se limita à sala de aula, mas espalha conhecimento em múltiplas formas e espaços. Sua obra, construída em meio a décadas de dedicação, mostra que a educação é, acima de tudo, uma forma de amor à linguagem e à humanidade.

Às portas de seu centésimo décimo quinto aniversário, seu nome permanece como referência incontornável de integridade intelectual e compromisso educacional. O Brasil que hoje celebra seus mestres pode encontrar em Houaiss o paradigma de uma geração que viu no ensino um ato de civismo e no saber uma forma de resistência. Entre livros, palavras e ideias, ele permanece — não apenas como autor, mas como professor de todos nós.


Marcelo Henrique de Carvalho

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